Exepcionalmente nesta semana, devido ao dia da consciência negra, o Papo de Domingo será publicado nesta sexta (20).
O MAIOR TÍTULO
Leandro A. Rodrigues
Quando era criança, não me lembro da data específica, ouvi, pela primeira vez, que o Vasco da Gama havia lutado contra o racismo. Na época, não tive acesso ao documento tampouco aprofundei-me no assunto. Simplesmente, senti um orgulho indizível, uma vez que entre o time de minha predileção e eu havia muito mais do que o afeto da escolha. Havia a mesma certeza: todos, na prática, precisam ter os mesmos direitos e, não apenas, os mesmos deveres.
O tempo passou e fez-me um amante dos livros. Procurei, então, aliar duas paixões: futebol e literatura. Mergulhei, sem limites, na história do nosso Gigante da Colina. Que satisfação! Que alegria! Senti algo semelhante à comemoração de um gol quando tive, pela primeira vez, acesso à histórica carta enviada ao “Exmo. Snr. Dr. Arnaldo Guinle” (com a data de 07 de abril de 1924), na época, batizada, apenas, de “Officio No 261”, escrita pelo, então, presidente do Vasco da Gama, o senhor José Augusto Prestes. A coragem demonstrada pelo dirigente vascaíno, ao abrir mão de fazer parte da “Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (A.M.E.A.)”, fez-me vibrar como se estivesse diante de uma cobrança de falta de Roberto Dinamite, uma finalização de Romário, uma arrancada de Edmundo, uma defesa de Acácio, um lançamento de Juninho, um drible de Mauricinho.
Para quem não conhece a história (a imagem da carta, na íntegra, ilustra esta crônica), os fundadores da A.M.E.A. (América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense), entre outras resoluções, apresentavam como condição, para que o Club de Regatas Vasco da Gama passasse a fazer parte da Associação, a eliminação de doze atletas (que haviam sido campeões cariocas de 1923) pelo fato de serem negros e possuírem uma condição
social desfavorável em relação aos atletas de outras equipes. Com uma coragem impressionante, o documento registra a seguinte resposta ao Presidente da A.M.E.A.:
Quanto à condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
No parágrafo seguinte, o Sr. José Augusto Prestes acrescenta algo que deveria ser, como muito bem disse, certa feita, no programa Redação Sportv, o professor Luiz Antônio Simas, “ensinado nas escolas”, ou seja, um rechaçar da hipocrisia, do preconceito e da desigualdade:
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
Em seguida, o mandatário vascaíno apresenta-se preocupado com o que poderia acontecer aos atletas, que eram alvo da elite da A.M.E.A., e deixa bem claro que “nunca” compactuaria com a atitude nefasta, solicitada pela Associação:
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.
Por fim, de forma polida, mas peremptória, comunica a decisão: “Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A”.
Fico a imaginar qual teria sido a reação do escritor Lima Barreto (falecido em 01 de novembro de 1922) diante da carta-resposta do C.R. Vasco da Gama. Digo isso, pois, em 1918, o pré-modernista escreveu uma crônica (“Sobre Football”) em que dizia que o
esporte não cresceria no país, por ser praticado pela elite, portanto pouco interessaria ao povo. Para ele, tratava-se de mais um instrumento de segregação: “jogo do pontapé que propaga a sua separação social e o governo subvenciona”. Em 1921, na crônica “Bendito Football”, publicada no “Correio da Manhã”, o escritor fez nova crítica, agora, à decisão do presidente Epitácio Pessoa de não levar “homens de cor” a uma competição na Argentina. Barreto, filho de pais negros, sempre sentiu na própria pele a questão do preconceito racial e social. No entanto, as palavras de Lima Barreto ocorreram, antes, da coragem do nosso Gigante da Colina. Creio que diante daquela carta, teríamos mais um ilustre torcedor.
Anos depois da supracitada carta, o Vasco da Gama passou a adotar o slogan de o clube com “a história mais bonita do futebol brasileiro”. Acho bom o slogan. Devemos, sim, valorizar o nosso passado. Não sei se temos “a história mais bonita do futebol brasileiro”. Sei, apenas, que temos uma história digna de muito orgulho e que a nossa luta pela igualdade é (e sempre será) o maior título vascaíno.
Saudações Vascaínas!