Na última semana, perdi a conta das discussões que vi sobre os rumos do futebol brasileiro. Tudo isso motivado pela chamada “MP do Flamengo” e a decisão da rede Globo em rescindir o contrato de transmissão do campeonato carioca. Muito se falou, e ainda vai se falar, dos rumos que esse esporte tem tomado no país, mas fico intrigado sobre quais ações serão tomadas por um clube específico em toda essa transformação. É fácil notar que estou me referindo ao Vasco da Gama: Clube com grande participação das camadas mais populares desde sua fundação.
Até pouco tempo atrás, com a lei Pelé, as partidas de futebol só podiam ser transmitidas com a anuência do clube mandante e do visitante. Com isso, a rede Globo manteve, por muito tempo, o monopólio dos direitos de transmissão, uma vez que assinava grande parte dos clubes e obrigava os demais a fazer o mesmo sob o risco de não ter suas partidas transmitidas na TV.
Agora, a conhecida “MP do Flamengo”, Medida Provisória n° 984/2020, modifica a lei Pelé e permite que os clubes mandantes das partidas negociem os direitos de transmissão das partidas sem a aprovação do visitante. O Flamengo foi o grande beneficiado com tal decisão e, assim que pôde, transmitiu seu jogo do campeonato carioca no Youtube. Bem-sucedida ou não, a decisão de sua diretoria motivou a emissora a romper o contrato de transmissão de todo o campeonato alegando ter perdido a exclusividade assinada.
A partir de agora, todos os aspectos do atual modelo de futebol no Brasil estão em questionamento.
Um pouco de história
O Rio de Janeiro tem 4 grandes clubes de futebol: Fluminense, Botafogo, Flamengo e Vasco. Desses, somente o Vasco não foi fundado e se localiza num bairro da Zona Sul da cidade.
A história vitoriosa do Vasco no futebol começa quando o clube se recusa a excluir de seu plantel 12 jogadores negros, a pedido dos clubes da zona sul, para se filiar a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). A criação da AMEA acontece depois que Botafogo, Flamengo, Fluminense e alguns outros clubes da elite da cidade do Rio, ao verem o Vasco se sagrar campeão da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), buscam uma forma de fugir do Vasco e seus jogadores negros.
Com a recusa do Vasco, por meio da chamada “Resposta Histórica”, em 1924, dois campeonatos são disputados em paralelo, com o Vasco vencendo a LMDT de forma invicta. No ano seguinte, o clube vence o racismo dos rivais da AMEA e integra-se à entidade.
A condição para entrada era que o time tivesse um estádio próprio e é, nesse momento, que os torcedores do clube se unem e constroem o estádio de São Januário, maior estádio da América Latina na época. O papel desempenhado pelo clube ao desafiar as elites e seus retrocessos marca o início da democratização e disseminação do futebol na cidade do Rio e no Brasil.
O ano de 2020
Quase 100 anos após a Resposta Histórica, o futebol se tornou um negócio altamente lucrativo e que movimenta milhões de reais e de pessoas. O mesmo futebol que antes unia pessoas de classes diferentes nas arquibancadas e na TV aberta, agora as separa no Pay- Per-View e nos camarotes das novas arenas.
O Vasco cresceu e se tornou um dos maiores clubes de futebol do Brasil e, embora amargue um dos piores períodos de sua história, o clube movimenta, aproximadamente, 20 milhões de torcedores apaixonados que juntos têm mantido o clube em meio a péssimas administrações.
É fato notar que, nos últimos 20 anos, as administrações que comandaram o Vasco foram responsáveis pelo enfraquecimento do clube como marca e pelas dívidas exorbitantes, mas também por distanciar o clube da sua torcida e afastar o legítimo clube do povo dos seus torcedores que residem nas comunidades. O Vasco é cada vez mais um clube da zona sul, mesmo estando em São Cristóvão.
As discussões sobre o conteúdo da MP 984 já corriam por meio de projeto de lei no legislativo, local onde de fato deveriam ser debatidas. A criação da medida é também uma tentativa do poder executivo de criar cortina de fumaça e conseguir apoio em meio à pandemia e escândalos de corrupção.
Historicamente falando, não é novo que o Flamengo tenha um comportamento elitista e busque uma forma de aumentar seus lucros. O sócio-torcedor do clube dá prioridade de compra aos torcedores que pagam o plano mais caro, o título de associação que dá direito ao uso das dependências do clube custa aproximadamente R$ 15 mil. A novidade é que o clube pretende cobrar dos torcedores para assistir os jogos via Streaming.
Em tempos de pandemia, quantas pessoas no país podem pagar para assistir jogos de futebol e ter planos de internet de qualidade para tal?
Desde os tempos da AMEA, o Flamengo sempre foi das elites, com a ajuda da imprensa e do rádio é que seu nome ficou mais popular, numa época em que conquistou títulos expressivos que catapultaram seu nome para todo país.
E o Vasco?
Com os rumos do futebol em xeque, cabe ao clube que peitou a AMEA pelo direito de ter entre seus jogadores homens negros e operários, lutar mais uma vez pela democratização do futebol. Se o caminho é dar mais controle aos mandantes dos jogos e criar novas formas de transmissão e disseminação para outros mercados, que seja o Vasco um dos líderes de um movimento para beneficiar o coletivo. Seja criando uma liga que negocia os direitos de transmissão em bloco, seja buscando formas de assistir os clubes menores do estado do Rio que vão perder cotas de TV.
É papel do Vasco ser farol das mudanças importantes e que afetam a população que reside nas comunidades, na barreira do Vasco, na zona norte e oeste. Que o Vasco não siga por um caminho onde o lucro é muito maior que a questão social.
Você pode me achar um sonhador por imaginar que, depois de 20 anos de más administrações responsáveis por afastar o Vasco cada vez mais de sua torcida, o clube teria uma atitude como essa. Por que agora seria diferente?
Ser torcedor do Vasco é, de certa forma, pensar diferente.
Por: Lucas Rodrigues