Imagine a cena: você precisa ir para algum lugar, abre seu aplicativo para solicitar carona e, quando vê o motorista, se depara com um campeão pelo seu time do coração. Essa é uma rotina conhecida para Nelson Domingues de Araújo, o Nelson “Patola”. Hoje motorista de aplicativo, o ex-atleta do Vasco da Gama foi entrevistado pelo ge e foi abordado sobre vários assuntos.
– A princípio, eu entrei como motorista no aplicativo. Aí depois veio essa oportunidade da cooperativa, onde estou há uns dois anos. Me dá a oportunidade de fugir das ruas – confessou Nelson.
Depois de começar a carreira no Botafogo, onde se profissionalizou e foi campeão da Copa Conmebol de 1993, o volante se transferiu para o Vasco em 1995. Dois anos depois, levantou a taça do Campeonato Brasileiro. Em 1998, Nelson teve a maior glória de sua carreira ao conquistar o inédito título da Libertadores pelo Vasco da Gama:
– Teve um passageiro que foi muito engraçado. Eu estava levando ele para Campo Grande, e ele começou a falar do Botafogo: “Tinha um que eu gostava, ele era marginal (risos), metia a pancada, eu era fã, o Nelson”. Quando ele foi me pagar, eu perguntei se ele não estava me reconhecendo: “Eu envelheci, mas eu sou esse Nelson aí que você falou.” Ele deu um pulo (risos).
Enquanto dirigia até os arredores de São Januário, Nelson contava histórias de seu período como jogador de futebol. Na porta do estádio, os vidros abaixaram para o procedimento padrão de identificação, mas quase não foi preciso: quando o funcionário do Vasco avistou Nelson, abriu o sorriso e fez o sinal para que liberasse sua entrada. O ex-jogador se disse feliz e revelou um episódio onde entrou em São Januário apenas para matar a saudade:
– Isso me deixou muito feliz. Eu antes estava pensando: “Caramba, vamos entrar lá, como que vai ser?”. Teve uma vez que eu cheguei e falei: “Amigo, eu sou o Nelson, ex-jogador do Vasco, campeão, posso entrar só 10 minutinhos?”. Eu estava com saudade. Fiquei uns 20 minutos sentado bem ali – diz ele, apontando para a arquibancada atrás do gol.
Nascido na Vila Kennedy, Nelson relembrou dos tempos de infância. Órfão desde cedo, Nelson teve a companhia de sua irmã, Maristela para atingir seus objetivos:
– Amo meus irmãos, mas meus irmãos mais velhos… Não foi isso que minha mãe ensinou, ela ensinou que em casa que come 10, come 11. Você já não tem mais a instrução dos pais, foi uma época muito difícil, eu vendia garrafas para comer arroz. Meu primeiro salário de juvenil no Botafogo, acho que seria uns R$ 50 hoje, eu fui para o açougue e gastei tudo lá. Minha irmã: “Você tem que guardar”. Falei que era só para gente comer uma carne.
Em contrapartida ao salário de juvenil, que era utilizado para comprar comida, os salários de profissional serviam para outras finalidades:
– Comprei tudo de roupa. Eu não tinha roupa, morava num quartinho, era quente pra caramba. Depois no outro salário, comprei um carro, um Chevette, para poder ir trabalhar.
Após ser revelado pelo Botafogo, o clube passava por dificuldades. Foi quando Nelson recebeu ligação do então vice-presidente de futebol, Eurico Miranda, onde tudo na sua vida mudou:
– “Alô, sabe quem está falando?”, eu respondi que não. “É bom que a partir de hoje você saiba com quem vai conversar: doutor Eurico”. Eu não acreditei, minhas pernas tremeram, fiquei pálido. O Jair Pereira, que trabalhou comigo no Botafogo, que intermediou. Aí o Eurico: “Se apresenta no dia tal, porque você é do Vasco”. E eu fui. Meu jeito bateu com o dele.
Nelson contou histórias sobre a convivência com o dirigente, com quem chegou a ter rusgas em seu início no Vasco. Eurico sempre prometia aos jogadores o pagamento de “bicho” em caso de vitória contra o Flamengo, maior rival:
– Eu vinha do Botafogo, onde a gente mandava. Os diretores falavam alguma coisa, a gente dizia: “Não, assina. Assina porque você não tem palavra”. Aí fui para minha primeira reunião aqui, foram falar de bicho. Eu: “Doutor, tem que escrever o que você está falando. As palavras o vento leva”. Todos os jogadores me olharam, já achei estranho. Ele: “Vai tomar no c***. Eu sou homem de palavra, eu falei, eu faço”. Ele chegava com o charutão. Qualquer vitória empolgava, mas vitória sobre o Flamengo ele empolgava mais. Em 96 ganhamos duas vezes do Flamengo de quatro gols. Em 97 foi a glória. O Vasco pegou uma escada e subiu. Depois de um tempo, não souberam administrar essa nave.
Ao falar do Vasco, Nelson se emocionou a todo momento, mas seus olhos ficavam marejados quando o nome do comandante do esquadrão da Libertadores, Antônio Lopes, era citado. O treinador é a grande referência da vida de Patola.
– Sempre tive o dom de ter a palavra, boa oratória, mas ele dizia que isso não ganhava nada, o que ganhava era a postura. Aprendi a ter compromisso com horário, me doar 100% no meu trabalho, então hoje sou muito feliz. Outro dia me encontrei com ele e agradeci: “Hoje eu sou um outro homem, um Nelson diferente, um pai diferente, por causa de você”. Tudo que eu faço eu penso no que o Lopes falava. Quando fui treinador, parecia que eu estava revivendo tudo com o Lopes. Colocava todos os ensinamentos, até ser chato. E o Lopes colocava o dedo na nossa cara e dizia: “Se tomar o gol a culpa é sua”.
Após pendurar as chuteiras, Nelson voltou a estudar, concluiu o ensino médio e iniciou um curso de treinador na CBF. Treinou o Ceres, clube do bairro de Bangu, por um curto espaço de tempo e fez boa campanha na Série B do Carioca de 2011, mas deixou o cargo. Por seguir à risca os ensinamentos de Lopes, revelou que foi muito duro com os jogadores.
Entretanto, Nelson não desistiu de trabalhar com o futebol, a grande paixão de sua vida. Seu sonho é retornar ao Vasco da Gama, onde segundo ele, nem deveria ter saído. Após rodar por clubes menores, encerrou sua carreira em 2008, depois de duas cirurgias no joelho.
– Começaram a surgir os empresários, e eu não tinha. Talvez o meu erro tenha sido isso. Depois tentei voltar, em 2002. Ficava comparando os outros clubes com o Vasco. O Vasco é muito maior que esses administradores que vão passar. Todos eles que estiveram aqui, eu pedi emprego. E ninguém me deu. Mas sei que Deus vai abrir uma porta, eu vou voltar. Eu vivo isso. Eu me vejo com roupa do Vasco. Não é uma fixação, é uma realidade. Não importa a função, só quero ajudar o Vasco. Se não começar aqui, vou começar em outro lugar, mas ainda vou voltar aqui.
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