MEUS HERÓIS CALÇAVAM CHUTEIRAS
Leandro A. Rodrigues
Sempre fui uma criança calma, estudiosa e obediente. Assim como existe o mito do
“bom selvagem”, de Jean Jacques Rousseau (“O homem nasce bom, e a sociedade o
corrompe”), em minha família sempre existiu o mito do “bom menino” (eu).
Venho de família bastante humilde. Ainda pequeno, meus pais saíam para trabalhar,
minha irmã estudava em turno diferente, e, quando eu voltava da escola, ficava sozinho em
casa. Para muitos meninos de minha idade, isso seria um excelente motivo para ir ao poço,
soltar pipa na laje, jogar bola na rua, ir para longe de bicicleta. No entanto, como eu era
obediente, ficava em casa o tempo todo, atendendo às regras estipuladas por meus pais. Isso
não quer dizer que não tinha amigos. Pelo contrário… Na verdade, tinha muitos amigos.
Muitos deles, com a graça de Deus, são meus amigos/irmãos até os dias de hoje. No
entanto, na rotina semanal, na ausência dos meus pais, era necessário que eu ficasse em
casa. E, desse modo, concretizava o mito familiar.
Foi, em virtude disso, que passei a ter duas brincadeiras pelas quais eu era
apaixonado: jogar bola e jogar futebol de botão. Bola, aos finais de semana, jogava com
meus amigos e primos. Futebol de botão, diariamente, jogava, sozinho, em minha casa.
Narrava os jogos, imitando os bordões do Silvio Luiz e do José Carlos Araújo. Fazia
entrevistas com os jogadores, como o Deni Menezes e o Gilson Ricardo. Tecia comentários
sobre a atuação dos meus craques imaginários, como o Washington Rodrigues e o Sérgio
Noronha. Havia todo um ritual: aquecimento prévio dos jogadores, escalação sendo
anunciada e divulgação da tabela do campeonato.
Na época, não havia as facilidades atuais da internet. Não venho de família de
leitores, por isso tmabém não havia, em minha casa, livros e/ou revistas com as histórias
dos clubes e dos jogadores. Por isso, os álbuns de figurinhas serviam como base para a
memorização dos rostos, das posições e havia até uma brevíssima narração acerca das
glórias do passado e das perspectivas atuais dos clubes para o campeonato em curso. E,
como sempre tive uma memória privilegiada, guardava tudo de cor. Sabia todas as
informações que estavam ali naquele álbum: nome completo, data e local de nascimento,
posição, peso e altura. Aquele era o meu catecismo diário. Aquelas fotografias, aqueles
jogadores, aquelas informações eram as minhas constantes companhias. Aqueles eram
meus constantes amigos. Principalmente, os jogadores do Vasco. Naqueles época, julgavame íntimo de Romário, pois sabia que o seu sobrenome era de Souza Faria, tinha nascido
em 29 de janeiro de 1966 no Rio de Janeiro, possuía 1,67 (alguns álbuns diziam 1,66 e
outro 1,70) e pesava 70 kg. Havia uma cumplicidade entre mim e o Mazinho, afinal, eu o
chamava pelo apelido, uma vez que o nome dele era Iomar do Nascimento. Como eles
foram importantes em minha vida!
Anos depois, já adulto, em meu carro, ouvindo Cazuza, o verso de uma de suas
canções mais famosas ecoou fundo em meu ser: “Meus heróis morreram de overdose”.
Estava parado em um sinal de trânsito. Ao ouvir esse verso (que já havia ouvido milhares
de vezes), estranhamente sorri. E, em meu íntimo, lembrei-me das longínquas tardes de
minha infância. Em seguida, ainda sorrindo, sozinho, no carro, confidenciei ao já falecido
cantor: meus heróis calçavam chuteiras.
Saudações Vascaínas!