O Maidstone, da 6ª divisão inglesa, já fez história nessa temporada. O time conseguiu chegar nas oitavas de final da FA Cup, maior copa da Inglaterra, mesmo com pouco investimento e poderio financeiro em comparação com os demais.
Ontem, o Maidstone foi eliminado pelo Coventry City, por 5×0. Mas o resultado alcançado já foi histórico. E o grande herói dessa campanha, sem duvidas, é um brasileiro: Lucas Covolan, de 32 anos, revelado no Vasco da Gama e desde 2015 em solo inglês.
O jogador foi eleito o melhor em campo na vitória que levou a modesta equipe para as oitavas de final, contra o Ipswich Town, que disputa a Championship, segunda divisão da Inglaterra. Em entrevista a ESPN, o jogador contou como é a experiência de jogar por um clube de divisões tão inferiores na Europa:
– Aqui, a infraestrutura é muito melhor que a de times da Série B do Brasil. Posso dizer que até mesmo de alguns clubes da 1ª divisão.
Mas Lucas também denunciou episódios de preconceito pelo fato de ser estrangeiro:
– Ele (treinador) chegava no vestiário e cumprimentava todo mundo, aí chegava para me cumprimentar e pulava, sabe? Nem conversava comigo.
CONFIRA OUTROS TÓPICOS DA ENTREVISTA:
Como foi parar na Inglaterra?
“Minha ida para a Inglaterra surgiu de uma ligação de telefone. Depois que eu saí do Atlético Rafal, da Espanha, fui passar férias no Brasil. Aí um amigo meu, o Alexandre Pascolato, que jogou comigo no Atlético-MG, me ligou e falou: ‘Lucas, o que você acha de jogar na Inglaterra? Sei que você está com contrato na Espanha, mas…’. E eu já o interrompi: ‘Não, não estou não! Estou estudando novas possibilidades…’. Aí ele me deu os bastidores: ‘Então, tem essa opção de jogar na Inglaterra, era para ser eu, mas te indiquei aqui. Posso passar seu contato para esse empresário e a gente vê se eles gostam de você’. E eu falei na hora: ‘Claro, claro! Pode passar!'”
“Enviei meu material para os caras e eles gostaram. Fui para o Whitehawk, que foi meu primeiro clube na Inglaterra. Era meu sonho jogar lá. Sempre digo isso, porque foi aqui (na Inglaterra) que o futebol começou. O Brasil tem cinco Copas do Mundo e é o país do futebol, mas o esporte começou aqui. Então, para mim sempre foi um sonho. Aqui, tem os clubes da Premier League, mas mesmo você jogando nas equipes menores, sempre tem chance de enfrentar os clubes maiores em competições como a FA Cup. E, claro, a parte monetária também foi um incentivo, além da cultura do país”.
“Desde então, passei por vários clubes e tive altos e baixos aqui. Já passei por bastante coisa aqui, enfrentei racismo, enfrentei depressão… Hoje, estou em um ponto da carreira em que estou top, top! Estou sendo reconhecido na rua, todos na cidade reconhecem meu trabalho. Quero seguir isso agora para o meu futuro”.
Como é jogar num time de 6ª divisão?
“Quando as pessoas falam das equipes de 4ª, 5ª, 6ª divisão da Inglaterra, elas não têm muita noção. Você tem que entender que a Inglaterra tem muitas divisões e não há qualquer comparação com a infraestrutura dos clubes do Brasil. O que posso te dizer é que aqui é um país de primeiro mundo, então tem muito dinheiro envolvido nas coisas”.
“Os times de 5ª e 6ª divisões têm muito mais infraestrutura que em outros lugares do mundo. Se você olhar para as equipes da 5ª divisão, muitas têm estrutura melhor que as equipes da Série B do Brasil. Posso dizer até mesmo que são melhores até que alguns clubes da Série A do Brasil. Então, se você falar da 5ª e 6ª divisão e tentar compará-las com o Brasil, não é a mesma coisa, até pelo dinheiro que tem aqui”.
É tudo profissional ou não?
“Eu nunca tive que trabalhar em outro emprego para me sustentar aqui, sempre fui jogador full time. É mais uma coisa que não tem como comparar com o Brasil. Eu sei que muitos times da Série A pagam muito bem, claro, mas, a partir da Série B, eles já não pagam tão bem. O que posso te dizer é que, aqui, tem salários de jogadores da 5ª divisão e da 6ª divisão que são melhores do que os que atuam na 2ª divisão do Brasil”.
“Até já passei por times que tinham jogadores que conciliavam dois trabalhos. No entanto, a maioria era como treinador infantil, trabalhando em escolas, essas coisas. Sempre trabalhos mais voltados para o esporte, mesmo. Aí eles trabalhavam das 9h às 17h e depois a gente treinava”.
“Tem algumas equipes na minha divisão que são assim, com jogadores que trabalham part time, não são jogadores full time. Porém, em quase todos os times que eu passei praticamente todos os atletas eram jogadores full time. Eu mesmo nunca trabalhei com outra coisa, sempre fui jogador apenas”.
Qual foi seu momento mais difícil na Inglaterra?
“Meus primeiros meses na Inglaterra foram complicados. A chegada, com nova cultura, nova língua… Eu já tinha uma base de falar inglês, mas, chegando aqui, você vê que o idioma é completamente diferente do que você aprende na escola no Brasil. Então, você acaba se sentindo um pouco fora do seu espaço”.
“O britânico também é uma pessoa muito fechada. Eles não têm esse calor humano do brasileiro, de ser bem receptivo e falar assim: ‘Depois do treino vamos lá em casa fazer um churrasco’. Não tem essas coisas. Senti bastante a falta de acolhimento por parte das pessoas”.
“No começo, nosso primeiro time até tinha vários brasileiros, então foi um momento em que tentei me adaptar pouco a pouco. No entanto, depois todos foram dispensados e fiquei só eu. Acabei sendo o cara que ficou fora do grupo, porque só eu era estrangeiro. E aí veio um treinador inglês e isso foi bem ruim para mim, porque eu via que ele era um pouco racista”.
“Ele não me tratava muito bem. Ele chegava no vestiário e cumprimentava todo mundo, aí chegava para me cumprimentar e pulava, sabe? Nem conversava comigo… Então, foi bem difícil essa primeira experiência com um treinador inglês”.
“Depois disso, fui emprestado para o Lewes, um outro clube, em que as coisas eram completamente diferentes. As pessoas eram muito receptivas e gostavam de mim, me incluíram muito bem no grupo. Depois disso, as coisas foram indo bem na minha carreira. Fui pouco a pouco buscando meu espaço e criando meu nome aqui”.
“Eu vivi também um momento de depressão aqui que não estava nada bem. Foi depois do ano da COVID-19, que eu não estava conseguindo ir para o Brasil, não conseguia ver minha família e meus amigos. Essas eram as coisas que me renovavam a energia para depois vir para cá e trabalhar o ano inteiro de novo. Então, foi a soma disso tudo”.
“Eu comecei a meu autossabotar. Eu estava na época num time muito bom, com um salário legal, tinha tudo. A estrutura do clube era incrível. Mesmo na 4ª divisão, tinha estádio de 20 mil pessoas, CT, tudo. Eu tinha tudo para trabalhar, mas não estava no meu melhor. Foram muitos fatos na minha vida pessoal, e aí eu não conseguia render em campo. Minha cabeça não estava boa e eu não conseguia focar no meu trabalho”.
“Foi quando o clube entrou em contato comigo. O auxiliar me perguntou se estava tudo bem e, naquele dia, eu disse que não, que não estava bem. Ele já tinha me perguntado outras vezes e eu sempre falava que estava tudo legal, mas nesse dia decidi falar a verdade, que eu não estava bem e estava deprimido. Estava evidente até pela questão do meu peso. Ele via que meu peso estava aumentando, e eu sou uma pessoa que sempre tive a mentalidade de estar com o corpo perfeito para conseguir desempenhar bem. Ele viu que meu rendimento estava caindo e me perguntou sobre tudo. Viu que eu não estava bem e me ajudou a me abrir”.
“Ele pediu para que eu entrasse em contato com a Federação Inglesa para tratarem comigo essa situação de saúde mental. Aqui, eles são excepcionais nisso, prezam muito a saúde mental. Quando você trabalha nas divisões profissionais, ou seja, entre a 1ª e a 4ª, eles dizem que você tem um ‘contrato vitalício’ com a Federação. Então, se você precisa de ajuda com algo, eles providenciam tudo o que podem oferecer”.
“Fui bastante a psicólogos, e foi assim que fui me reerguendo no futebol inglês. Foi um processo lento. Não foi nada rápido, porque eu estava bem para baixo, num buraco bem fundo, numa situação que nunca achei que fosse passar na vida. As pessoas que estão ao meu redor conhecem minha personalidade, sabem que sou do tipo de brincar bastante, estou sempre com astral e energia lá em cima. Então, eu mesmo fiquei surpreso de estar com uma depressão tão profunda. Achei que nunca ia passar por algo assim na vida”.
“Hoje, eu gosto de falar abertamente disso, porque sei que muitos passam por situação semelhante e dizem que está tudo bem, mas não se sentem assim. Eu sei bem como é, posso falar e espero que eles estejam me escutando. Procurem ajuda, falem com as pessoas, porque é uma coisa super séria. Hoje, posso dizer que dei a volta por cima e estou 100% bem e muito feliz com tudo. Agradeço a todos que me ajudaram nesse processo, que foi longo, mas acredito que ainda vou colher muitos frutos disso no futuro”.
Sua atuação contra o Ipswich chamou a atenção na Inglaterra?
“A repercussão que esse jogo teve aqui foi muito grande. Coloquei de novo meu nome em evidência no futebol inglês. Creio que os clubes tinham uma boa visão de mim, sabem que sou um bom goleiro. Então, acho que essa temporada vem provando para todos que estou super centrado, com uma cabeça no lugar e muito mais maduro hoje”.
“Hoje, nós estamos bem na nossa liga, lutando por vaga nos playoffs, e fui considerado o melhor goleiro da 1ª parte da competição. O jogo contra o Ipswich não teve nada de acaso, sabe? É um trabalho que a gente vem fazendo desde o começo da temporada, com a mente no lugar certo”.
“Hoje, sou uma pessoa muito mais madura, muito mais centrada. Com 32 anos, me sinto muito bem. Acho que ainda tenho muito para conquistar aqui. Acho que o futuro tende a ser muito bom. Quero continuar fazendo boas partidas, mas sempre mantendo os pés no chão. Isso é o mais importante de tudo: foco e trabalhar forte sempre”.
Como foi aguentar a pressão de um time de divisão superior?
“Foi surreal, pelo bombardeiro que a gente tomou. Parecia uma luta de boxe. A gente ficou nas cordas só tomando porrada, só tomando porrada, só tomando porrada… Aí, acertamos dois cruzados e eles caíram, entendeu? Foram dois cruzados bem dados no contra-ataque, e foi assim que ganhamos o jogo”.
“Claro que eu tive minha parcela ali também para a gente fazer um bom jogo, mas o segredo foi ir com uma mentalidade bastante positiva para o jogo. Você vê que todos do nosso time estavam bem unidos e sabendo o que fazer. Tem muitos jogadores da nossa equipe que possuem nível para estar um divisão acima. E nós mostramos isso”.
“Minha família me ligou depois do jogo e comentaram comigo que eu estava bem tranquilo e sereno na partida, super focado, contribuindo e dando meu melhor. E foi realmente assim que eu me senti. Estava muito confiante com tudo o que estava fazendo e mostrando, até porque sei que tenho potencial para estar em ligas maiores”.
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