Em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, há uma frase que se tornou bastante conhecida, principalmente devido ao imaginário que ao longo do século XX foi se construindo em torno do que passou a se chamar Nordeste e nordestino. A frase é: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. O signo sertanejo, está aí presente, obviamente, como aquele que habita o sertão, e quando se fala nesse bioma, logo se pensa em nordeste e em nordestino, dada a força que a imagem do solo seco e rachado, do chique-chique, do povo duro, teve e ainda tem.
No entanto, uma imagem chamou a atenção no cenário nacional futebolístico ontem à noite: a imensa massa vascaína aguardando o elenco cruzmaltino chegar ao Aeroporto Internacional Marechal Cunha Machado, na capital maranhense. A chegada estava prevista para o início da madrugada, por volta das 1h05. Na live do Papo na Colina, foi possível perceber como o Vasco da Gama possui, na região nordeste, uma imensa e apaixonada torcida. Milhares de pessoas cantaram, pularam, esperaram e deram mais do que incentivos aos jogadores para a crucial partida que será disputada neste sábado (9) contra o Sampaio Corrêa.
Do sentimento vascaíno não há dúvidas, porém, na própria live foi possível notar como o torcedor carioca, o vascaíno que nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, ainda tem bastante surpresa quando existem manifestações do tipo quando o assunto a torcida off Rio e sua paixão. A surpresa de muitos companheiros se deve, e aqui incluo até os que tiveram e ainda têm formação acadêmica crítica, ao fato de que uma imagem nordestina, ou imagens de nordeste, um imaginário portanto, ainda tem muita força.
Foi possível notar, em muitos momentos da mais do que exitosa live do Papo na Colina direto do Maranhão, expressões de surpresa como “cara, o que é isso?!“, “Olha só pra isso!“, “Essa torcida é demais!“, e em todas elas um só sentido: o de que ainda circula na mente de muitos cariocas, um nordeste que não tem modernidade, não tem conexões, um nordeste que só existe como agropecuário, como natureza seca e dura. Contudo, é de suma importância apontar que o Nordeste vem de um processo acelerado de urbanização já desde a década de 1970, e hoje possui grandes metrópoles, como Recife, Salvador e Fortaleza, não ficando atrás capitais como a própria São Luís, Natal, João Pessoa, Teresina, Aracajú e Maceió. Em quaisquer dessas capitais a recepção seria igual ou até mesmo maior.
Os comentários no chat durante a transmissão ao vivo da recepção calorosa, ajudam a entender ainda mais a ideia que aqui se quer construir. As cidades interioranas de toda a região se fizeram presentes: cidades da região do Seridó no Rio Grande do Norte, recôncavo baiano, interior paraibano e diversas outras regiões. O Nordeste já há muito deixou de ser o que dele pensavam e ainda seguem pensando muitos da região sudeste, se é que um dia foi tal imagem. O Nordeste é moderno, é atualizado, não é a região atrasada como muitos ainda pensam. Não se quer aqui negar que na região há problemas, porém, há muitos outros pontos que precisam ser vistos.
Se a reação carioca, a reação do sudeste, foi de surpresa, é que ainda prevalece em certa medida a imagem construída de que o nordestino é acima de tudo um atrasado. Mas não é assim. O torcedor vascaíno do Nordeste consegue suportar tantos anos sem ver o clube in loco justamente devido aos aparatos tecnológicos aos quais tem acesso, ou seja, graças às conexões que a modernidade lhe permite, lhe autoriza, lhe proporciona. O nordestino não é um Jeca Tatu, é um moderno, um cidadão típico das metrópoles, e nas cidades interioranas essa modernidade também está presente, é nítida. É a tal tecnologia, tão difícil de ser imaginada quando se fala de Nordeste justamente pela ideia de atraso e inferioridade que ainda circula, que permite o torcedor do Vasco no Nordeste ser o que é, fazer o que faz e estar perto do seu clube de coração.
O Nordeste possui universidades, empresas, arte, cidades cosmopolitas, comércio forte, conexões…e muitos torcedores cujos clubes são de fora do Rio de Janeiro, para delírio dos conservadores regionalistas, que querem um nordeste que só fale para dentro, que não se conecte, que não se lance para além das fronteiras. O Nordeste que ontem se viu e hoje e hoje se diz, foi o do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (professor paraibano autor de A invenção do Nordeste), um Nordeste do século XXI, moderno, conectado e acima de tudo apaixonado.
Neste 8 de outubro de 2021, é necessário destruir certas imagens que ainda circulam nos discursos de muitos, vascaínos ou não, do sudeste do país. O Nordeste é reduto moderno de vascaínos, que se conectam, que amam à distância, que lêem, que ficam sabendo, que conhecem do Vasco tanto quanto qualquer um do Rio de Janeiro.