A Resposta Histórica de 1924 é um dos maiores símbolos de inclusão que o futebol já viu. A carta do jogador Antonio Rüdiger entra nesse grupo de resistência antirracista.
Em 1923, o incômodo Club de Regatas Vasco da Gama, considerado pequeno e de recente promoção à elite do futebol carioca, consagrou-se campeão. A principal característica daquele elenco era a presença de atletas negros em meio a atletas brancos sem a demarcação de posições de acordo com a origem social e a cor da pele.
Um ano depois, em 1924, a AMEA (Associação Metropolitana dos Esportes Athléticos), formada pelos clubes da zona sul – Botafogo, Flamengo e Fluminense – exigiu do Vasco algumas estranhas condições para a permissão de entrada na liga. Uma dessas exigências foi a de excluir 12 jogadores do elenco que havia sido campeão, e em nome de uma curiosa moralidade. Os critérios para tal exclusão baseavam-se principalmente no fato desses jogadores serem analfabetos e operários, mas um outro fator estava em jogo: a negritude desses. Todos os jogadores com pedido de exclusão por parte da AMEA eram pretos. Uma mistura inegável de ódio elitista a pobres, pretos e operários. O Vasco disse não à exclusão e essa negativa é até hoje uma memória viva nas arquibancadas de São Januário e principalmente no coração do torcedor vascaíno. Assim respondeu o Clube que lutou “por negros e operários”:
Um dos trechos mais marcantes desse Ofício 261 é: “São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias“. E assim o Vasco disse “não!” à racista exigência da AMEA. O clube foi aceito um ano depois na elite do futebol carioca.
Nas últimas horas, outro documento, outro histórico desabafo, ficou bastante conhecido. O zagueiro alemão Antonio Rüdiger, hoje no Chelsea e finalista da Liga dos Campeões da Europa, expressou o que sentiu quando de um derby della Capitale em 2017. Segundo o então atleta da Roma, os torcedores da Lazio gritavam-lhe, cheios de ódio: “Vá se foder, vá comer uma banana“, entre outros diversos insultos racistas e sempre ao som dos grunhidos de macaco. Rüdiger garante que esse não foi o único ato racista que sofreu (e muito provavelmente não será o último). O alemão ainda lançou duras críticas ao que pode ser considerado um hipócrita jogo midiático operado pela necessidade de gerar conteúdo nas redes e nele ganhar likes e seguidores:
Sempre que algo assim acontece, como o mundo do futebol reage? As pessoas dizem “ahhh, é tão terrível”. Os clubes e os jogadores postam uma pequena mensagem no Instagram: “Chega de racismo!!!”. Todos agem como se fossem “apenas alguns idiotas”. Há uma investigação, mas nada acontece. De vez em quando, temos uma grande campanha nas redes sociais, todo mundo se sente bem consigo mesmo e, então, voltamos ao normal. nada muda de realmente. Por que a imprensa, os torcedores e os jogadores se juntaram para acabar com a Superliga em 48 horas, mas, quando há abusos racistas evidentes em um estádio de futebol ou online, é sempre “complicado”? Talvez porque não sejam apenas alguns idiotas nas arquibancadas. Talvez porque vá muito mais a fundo.
Para o zagueiro que cresceu em Neukölln, uma quebrada de Berlim, a luta antirracista precisa ir muito além do desejo egoísta que as postagens em redes sociais despertam, revelam. Os que postam que o racismo precisa ter um ponto final realmente se importam? O que fazem para que manifestação tão destrutiva seja justamente punida? Rüdiger ainda chega a criticar o fato de muitos torcedores, quando presenciam gritos racistas nas arquibancadas, ficarem em verdadeira paralisia e nada fazem. O silêncio e a paralisia são maneiras de concordar com tais atos.
Os clubes estão dispostos a, por exemplo, não entrarem em campo em caso de insulto racista de quaisquer que sejam as torcidas em um jogo de liga nacional? Esses mesmos clubes que querem o dinheiro da Conmebol ou da UEFA, colocariam a luta antirracista no centro da questão ou o financeiro falaria mais alto? Estão dispostos a dizer não! ao racismo como ele realmente precisa ouvir e sentir ou continuarão organizando campanhas e mais campanhas sem chegar ao centro da questão?
O Vasco da Gama teve a coragem de dizer o seu não!, claro que em outro momento social, histórico e esportivo, no entanto, o símbolo se mantém e serve de exemplo sobre a intensidade e a coragem que uma luta antirracista precisa ter.
No último 5 de maio, os jogadores do atual elenco vascaíno tiveram uma conversa no CT do Almirante sobre racismo. Nela, o professor de História e vascaíno José Nilton Júnior falou do quanto é importante o engajamento do atleta no combate ao racismo e reforçou o histórico papel do Vasco nessa luta.
Em sua carta, Rüdiger ressalta justamente o valor fundamental que a discussão no vestiário, nos treinamentos, e uma efetiva ação dos jogadores no combate ao racismo possuem:
Até mesmo nós, jogadores de futebol, fazemos parte desse sistema. Quantas vezes temos esse tipo de conversa profunda no vestiário? Não com tanta frequência, para ser honesto. Parece que estamos realmente muito alienados para falar sobre essas coisas da vida real. É sempre PlayStation, Instagram, carros, a próxima partida -sempre há algo para alienar de assuntos mais difíceis. […] Postando, postando, postando. Como se a gente tivesse feito algo. No entanto, não fizemos nada. Nada muda.
Posturas como a do Vasco com a Resposta Histórica e desabafos, questionamentos, reflexões e sentimentos como os de Antonio Rüdiger são caminhos para que se alcance o fim do racismo no futebol. É muito difícil extingui-lo no tecido social por completo, porém, é possível transformar o futebol em um ponto exemplar de combate às práticas racistas. O Vasco deixou seu exemplo na História, e faz questão de continuar sendo um exemplo, e o mesmo faz Rüdiger. Exemplos não nos faltam.