A VIRADA DO SÉCULO
Leandro A. Rodrigues
Como já devem ter percebido, sou apaixonado por lembranças. Tenho memória fotográfica e, às vezes, uma fragrância, uma música, uma palavra, uma data transportam-me ao passado. Volto a momentos vividos como se eles estivessem acontecendo, novamente. Tudo de forma muito límpida e clara. Lembro-me de detalhes não apenas do fato em si, mas de situações ao redor, do que senti naquele momento.
No penúltimo domingo de 2020, dia 20 de dezembro, aconteceu exatamente o que descrevi acima. Quando acordei, ao olhar para o celular, vi a data capaz de trazer à tona um detalhado flashback. Era o aniversário de um dos dias mais felizes da minha vida de torcedor vascaíno. Há 20 anos, havia presenciado o jogo mais espetacular e inesquecível da minha vida.
Ainda deitado, revisitei detalhes daquele dia. Bruno (outro grande vascaíno) e eu fechamos a biblioteca onde trabalhávamos. Atravessamos a pé uma conhecida Rua de Petrópolis, a Avenida Köeller. Eu estava ouvindo o jogo com um dos fones no ouvido e o outro livre para ir passando as informações ao meu colega de trabalho. Quando estávamos diante da belíssima Catedral de São Pedro de Alcântara, percebi que havia um ônibus parado no semáforo. Na época, aos 21 anos, a coluna ainda não dera sinais de desgaste, por isso, afobado, despedi-me de meu amigo vascaíno e saí em disparada em direção ao ponto de ônibus (cerca de uns 100 metros). Foi algo digno de causar arrepios em Usain Bolt. Cheguei ao ponto junto com o coletivo. Embarquei e, sentado, com o meu radinho de pilhas, fui ouvindo o jogo na companhia de José Carlos Araújo, locutor da Rádio Globo, na época. Durante o trajeto, havia momentos em que o som melhorava e, em outros, tinha grande dificuldade de identificar o que era narrado. Em silêncio, agora, com os dois fones enterrados em meus ouvidos, fui sofrendo com os momentos iniciais do jogo.
Quando o Garotinho disse: “Apite comigo, Galera. Trinta jogados. Quinze por jogar”, cheguei ao meu destino. Desembarquei. O bar, em frente ao ponto em que desci, estava lotado de vascaínos. Tive o impulso de entrar, porém lembrei-me de que faltavam, no máximo, 10 minutos para chegar à minha casa. E, por isso, novamente, após um dia inteiro de trabalho, saí em disparada, como um velocista olímpico. No meio do caminho, senti um arrepio. José Carlos Araújo, entre um chiado e outro, disse: “Pênalti para o Palmeiras!”. Parei de correr. Fui caminhando. Agora, procurava um local cujas ondas sonoras chegassem mais límpidas e, ao mesmo tempo, dizia, caminhando pela calçada, sozinho: “Vai perder! Vai perder! O Helton vai pegar!”. Infelizmente, aos 36 minutos do primeiro tempo, ouvi o consagrado bordão do Garotinho após batida firme do paraguaio Arce: “Entrou!”. Naquele momento, de forma instantânea, ouvi muitos gritos, vindos de diversas casas. Resmunguei, de forma irônica: “Como tem palmeirense aqui!”. Desliguei o rádio. Passei em frente a mais um bar, que estava com a bandeira do nosso maior rival, embora o jogo não fosse contra ele. E, ao chegar ao portão da minha casa, ouvi nova explosão de gritos. Naquele momento, não precisei buscar ondas sonoras mais límpidas, pois, pela comemoração efusiva de um vizinho rubro-negro, estava claro que era o segundo do Palmeiras.
Entrei em minha casa, e o meu pai disse:
– Já está dois a zero. Vou dormir. Vamos ser vice mais uma vez.
(Pausa rápida: em 2000, o Vasco havia sido vice-campeão do Mundial [perdera nos pênaltis para o Corinthians], vice-campeão do Rio-São Paulo [perdera os dois jogos finais para o Palmeiras] e vice-campeão carioca [perdera ambos os jogos finais para o Urubu]).
Antes de se deitar, a preocupação paterna ainda recomendou:
– Vai dormir. Não fique sofrendo…
– Não consigo! Verei até o fim!
Pelo tempo regulamentar, faltavam cinco minutos para o término da primeira etapa.
Quando estava sob o chuveiro, ouvi nova explosão de gritos. Não restavam dúvidas: era o terceiro do Palmeiras. Deixei a água cair em minha nuca e, apenas, lamentei: “Hoje era para ser diferente…”.
Sentei-me para jantar e percebi que, no início do segundo tempo, o time voltara com ânimo renovado. Aos 14 minutos, Romário, de pênalti, fez o primeiro do time da Colina. Comemorei de forma bastante tímida. Em meu íntimo, disse: “Ainda dá tempo!”. Aos 22 minutos, em nova cobrança de pênalti, mais uma vez, Romário balançou a rede alviverde. Agora, a comemoração não foi tímida. Foi com a certeza de que era possível o empate. Com os meus gritos, meu pai levantou-se e foi para a sala.
– Será que dá?
– Pelo menos o empate, sim.
Aos 32 minutos, uma ducha de água fria: Júnior Baiano foi expulso.
Meu pai, ao meu lado, xingou sem piedade o zagueiro e sentenciou:
– Já era…
– Tenho certeza de que vamos empatar!
Aos 40 minutos, Juninho Paulista, para mim o grande nome do jogo, empatou. Meu pai e eu nos abraçamos! Corri para a varanda e gritei com todas as forças: VASCO!!!!!!!!!! A emoção invadiu-me de forma absurda. Não conseguia parar de gritar: VASCO! VASCO! Entre risos e lágrimas, a comemoração não parava. Um outro vizinho, vascaíno, correu para a sua varanda e, olhando para mim, falou: “Vamos virar!”
Voltei para ver o jogo. A adrenalina estava a mil. O coração disparado! Sabia que a história estava sendo escrita ali, na minha frente. E, em meu íntimo, refiz a sentença dita sob o chuveiro: “Hoje, vai ser diferente!”.
Aos 47 minutos e 53 segundos, após chute de Juninho Paulista, a bola sobrou livre para o Baixinho. Romário só empurrou para o fundo das redes do goleiro Sérgio.
Saí como um louco para a varanda! Peguei uma vuvuzela (na época, apenas a chamava de corneta) da Copa de 1994 e fiz o som ecoar para expulsar a tristeza do pênalti perdido por Edmundo em janeiro; espantar o 4 a 0 do Rio São-Paulo de março; exorcizar a virada do time da Gávea em junho. Não foi, apenas, pelo jogo da Mercosul. Não foi, apenas, pelo título sensacional. Foi o som da liberdade de quem, mais uma vez, coneguia ocupar o lugar mais alto no pódio, após tantas vezes, naquele inesquecível ano, ter ficado no quase.
Peguei a minha bandeira, coloquei-a nas costas, fui para a varanda com o meu pai e, com os nossos vizinhos vascaínos, entoei, entre lágrimas, o hino que vinha de um carro, parado em frente ao bar, onde outrora, estava a outra bandeira.
Já sem voz, olhei para o céu e, com uma sensação de alívio, agradeci: “HOJE, FOI DIFERENTE!”.
De repente, o sino da Igreja, perto de minha casa, fez-me regressar à atualidade e retirou-me de 20 anos atrás, num átimo de segundo, como se fosse o DeLorean pilotado por Marty Mcfly. Olhei para o lado. Minha esposa estava dormindo e, por isso, não me viu enxugar as lágrimas atuais que rolaram pelas lembranças do dia em que presenciei a virada do século.
Saudações Vascaínas!